EXPERIÊNCIAS PSICOMOTORAS SIMBÓLICAS NA INFÂNCIA COMO IMPORTANTE FATOR NA CONSTRUÇÃO DO EU CORPORAL
PATRÍCIA TÁVORA[1]
RESUMO
O presente artigo comenta sobre o valor das experiências psicomotoras para a formação corporal da criança, bem como, para a elaboração da imagem corporal – eu corporal. O vivido corporal de forma simbólica e bem conduzida por terapeutas e psicomotricistas favorece ao sujeito, ainda em fase de construção de sua identidade, situações simbólicas de expressão de emoções que serão direcionadas para relações saudáveis e construtivas. Ressalta a ambivalência da criança nos primeiros anos de vida em luta com o desejo de amor e ódio pelo adulto detentor do poder e autoridade; o surgimento da agressividade como necessidade de separação desse adulto para assumir sua própria identidade.
Palavras – chaves: psicomotricidade, imagem corporal, esquema corporal, identidade
1. INTRODUÇÃO
A criança percebe seu próprio corpo por meio de todos os sentidos. É através do ciclo sensório perceptivo motor que a criança apreende a realidade do mundo e estabelece relações, sendo, portanto, de suma importância facilitar a organização perceptiva na criança.
A educação perceptiva terá a finalidade de facilitar à criança um universo onde reinam uma organização e uma estrutura, um ponto de apoio necessário para fazê-la passar progressivamente de um mundo imaginário para um objetivo e “criar”, raciocinar, transformar e atuar.
Para tal, as diferentes noções que entram no conceito geral de espaço nascem, desenvolvem-se, completam-se através da ação vivida pela criança. Gravam-se de modo inconsciente antes de tornarem-se aspectos da realidade presente e antes de poderem manifestar-se na expressão gráfica ou verbal. O seu corpo vai ocupando um espaço no ambiente em função do tempo, captando assim imagens, recebendo sons, sentindo cheiros e sabores, dor e calor, movimentando-se. O corpo é o seu centro, o seu referencial, para si mesma, para o espaço que ocupa, e na relação com o outro.
A noção do corpo está no centro do sentimento de mais ou menos disponibilidade e adaptação que temos de nosso corpo, e está no centro da relação entre o vivido e o universo. É nosso espelho afetivo-somático ante uma imagem de nós mesmos, do outro e dos objetos (RAMOS, 2002).
Estas experiências psicomotoras da criança podem ser definidas como esquema corporal. O esquema corporal é uma aquisição lenta e paulatina. Desenvolve-se desde antes do nascimento e vai se incrementando de forma notável até o terceiro ano de vida e, logo, continua em permanente evolução adaptativa pelo resto da existência do individuo. Se estrutura sobre a base dos componentes neurológicos em desenvolvimento e maturação onde se liga fundamentalmente, as percepções exteroceptivas, proprioceptivas e interoceptivas que permitem estabelecer, em um momento inicial a consciência sobre localização espacial total, a capacidade e o funcionamento de uma determinada parte do corpo, a consciência inicial sobre a magnitude do esforço necessário para realizar uma determinada ação, e a consciência sobre a posição do corpo e suas partes no espaço durante esta ação (BARRETO, 2002).
Quanto maior forem os estímulos e as possibilidades de novas experiências do recém nascido durante toda sua trajetória de vida, mais completa será a sua formação do esquema corporal, principalmente sob o ponto de vista psicomotor.
As experiências corporais que determinam a imagem corporal levam a uma modelação que refletirá na adolescência e na vida adulta. Sua forma poderá ser lapidada, porém terá seus elementos da construção inicial preservados, apesar das transformações ocorridas ao longo da vida. Portanto, todas as experiências psicomotoras da infância estão diretamente relacionadas com a formação da imagem corporal, seja ela positiva ou negativa. A imagem corporal é a figuração do próprio corpo formada e estruturada na mente do mesmo indivíduo, ou seja, a maneira pela qual o corpo se apresenta para si próprio. É o conjunto de sensações sinestésicas construídas pelos sentidos (audição, visão, tato, paladar), através das experiências vivenciadas pelo individuo, ou seja, sua subjetividade.
2. COMO CONSTRUIR UMA IDENTIDADE A PARTIR DAS EXPERIÊNCIAS VIVIDAS PELA CRIANÇA?
Saber o que é estável e o que é circunstancial em sua pessoa, conhecer suas características e potencialidades e reconhecer seus limites é central para o desenvolvimento da identidade e para a conquista da autonomia. A capacidade das crianças de terem confiança em si próprias e o fato de sentirem-se aceitas, ouvidas, cuidadas e amadas oferecem segurança para a formação pessoal e social. A possibilidade de desde muito cedo efetuarem escolhas e assumirem pequenas responsabilidades favorece o desenvolvimento da auto-estima, essencial para que as crianças se sintam confiantes e felizes.
O desenvolvimento da identidade e da autonomia estão intimamente relacionados com os processos de socialização. E estes, estão intimamente relacionados, por sua vez, com as experiências psicomotoras. Nas interações sociais acontece a ampliação dos laços afetivos que as crianças podem estabelecer com as outras crianças e com os adultos, contribuindo para o reconhecimento do outro e a constatação das diferenças entre as pessoas, valorizadas e aproveitadas para o enriquecimento de si próprias.
A psicomotricidade influi no processo relacional do ser humano com o meio ambiente, sendo o ato psicomotor uma expressão da socialização da criança. Juntamente com a capacidade relacional, que é um componente primordial do processo de aprendizagem, ele está envolvido com os fatores emocionais e ambientais que o condicionam. Determina também, o desenvolvimento da personalidade através da exploração e da comunicação em seu meio, constituindo o investimento emocional da atividade psicomotora.
A psicomotricidade, em sua definição mais utilizada, pode ser entendida como uma ciência que tem como objeto de estudo o homem através do seu corpo
em movimento e em relação ao seu mundo interno e externo, bem como suas possibilidades de perceber, atuar, agir com o outro, com os objetos e consigo mesmo. Está relacionada ao processo de maturação, onde o corpo é a origem das aquisições cognitivas, afetivas e orgânicas. Psicomotricidade, portanto, é um termo empregado para uma concepção de movimento organizado e integrado, em função das experiências vividas pelo sujeito cuja ação é resultante de sua individualidade, sua linguagem e sua socialização. (S.B.P.1999).
em movimento e em relação ao seu mundo interno e externo, bem como suas possibilidades de perceber, atuar, agir com o outro, com os objetos e consigo mesmo. Está relacionada ao processo de maturação, onde o corpo é a origem das aquisições cognitivas, afetivas e orgânicas. Psicomotricidade, portanto, é um termo empregado para uma concepção de movimento organizado e integrado, em função das experiências vividas pelo sujeito cuja ação é resultante de sua individualidade, sua linguagem e sua socialização. (S.B.P.1999).
O “problema” da identidade é, de fato, um grande desafio para quem busca se enveredar neste assunto. Mesmo porque, o ser humano nunca sai desta ambivalência conflituosa de oscilações dos seus desejos, pois, o amor é sem dúvida o prazer de ser local do outro, complementaridade da sua falta, e também o desejo de fazer do outro seu próprio complemento. O amor, fora dos momentos de fusão recíproca, é, portanto uma problemática conflitante no sentido em que ele é sempre redutor de sua própria identidade ou da identidade do outro. Escapar desse conflito é se fechar em si, na aceitação de uma solidão existencial tingida de narcisismo; ou então, tornar-se o próprio complemento de sua falta, sendo isso a psicose”. (Lapierre/Aucoturrier.1984).
A construção da identidade advém de uma sensação de contato com o corpo; para tanto a pessoa precisa ter consciência daquilo que está sentindo. As primeiras experiências motoras da criança, principalmente as experiências globalizantes, vão permitir-lhe uma totalidade, reunindo seu corpo em uma imagem global, para que possa surgir a identidade. Sensações de desequilíbrio e equilíbrio, balanços, giros, saltos e quedas, todas estas atividades comuns e espontâneas da criança nos primeiros meses de vida são também carregadas de uma “forte carga emocional, na medida em que estão ligadas ao medo da queda, às sensações viscerais e à desorganização das tensões tônicas de postura no movimento ou na perda dos apoios. Existe aí uma espécie de desestruturação do corpo seguida por uma reestruturação, quando a atividade é interrompida”.(Lapierre/Aucoturier.1984).Elas são essenciais na construção do eu corporal unificado e autônomo.
Estes autores contextualizam a experiência da "falta" no processo de desenvolvimento da Identidade corporal na necessidade do individuo transferir ou se apoiar, e porque não dizer, consumir o outro. Este se revela desde o nascimento do bebê, quando se corta o cordão umbilical e há a separação do líquido amniótico, até a fase adulta quando ainda há a necessidade de recuperar o trauma ocorrido na quebra da fusionalidade. Para os autores a construção da identidade corporal ocorrerá espelhada no que o outro apresenta, e sobre o desejo do individuo reproduzido pelo outro.
A falta no corpo, oculta no inconsciente, vai emergir no consciente sob a forma simbólica de uma falta do ter. Mas o ter não pode nunca preencher esta falta e o desejo de posse pelos objetos torna-se incontrolável cumulativo e desabando como uma avalanche. Daí surge uma agressividade que precisa ser vivida simbolicamente para que a criança possa resignificar suas pulsões agressivas.
A criança, em luta com todos os desejos possessivos dos outros, principalmente dos adultos; em luta também com seus próprios desejos fusionais (que a deixam ligada ao corpo amado do adulto, desejos estes, sempre frustrados por este adulto), na terapia psicomotora, vai encontrar espaço para vivenciar de forma simbólica estas frustrações. Neste contexto simbólico a criança encontrará sua identidade, sua diferença que vai permitir ser si mesmo, ser único, não mais o outro, o complemento do outro. Esta é a situação ideal para a criança.
O corpo do adulto, local de amor da criança, é pois, também, um local de sofrimento pela frustração que lhe é imposta. E quanto maior for este amor, maiores serão a frustração e o sofrimento, maior também será o ódio que dele vai emergir. Estamos entrando na problemática bem conhecida de “amor-ódio” (Melanie Klein). A criança verbaliza inconscientemente o seu desejo de destruir o corpo do adulto para poder se libertar de uma relação conflituosa para ela. Algumas crianças no período da educação infantil, por exemplo, experimentam claramente esta ambivalência: inicialmente, elas chegam perto, se aninham, procurando um contato e, em seguida, nos agridem com bastante agressividade (transferindo para o corpo do terapeuta, muitas vezes, o conflito com seus próprios pais).
Uma das origens primárias da agressividade, segundo estes autores, se baseia exatamente nesta experiência involuntária, que é a frustração do desejo do corpo do outro. Seria a agressividade de posse. As crianças pequenas, freqüentemente, gostam de dar, mas não gostam que lhes tomem algo, defendendo o objeto que o outro queira lhe tomar. A seguir, vemos a agressividade de afirmação e dominação, na qual o desejo de agredir as outras crianças é exatamente a projeção, o reconduzir de um desejo de agressão contra o corpo do adulto (da mãe, do pai, do terapeuta). Na medida em que este adulto se deixa levar neste jogo, ele se torna o alvo preferido das crianças e, pode-se perceber uma diminuição da agressividade entre as crianças, valorizando a importância de um trabalho psicomotor preventivo na educação infantil.
É fundamental que o adulto, a partir desta etapa da vida da criança, inicie um processo de “frustração gradativa”, não aceitando mais ser permanentemente o complemento da falta da criança e a criança vai acentuar esta ruptura na medida em que não aceita deixar de ser o objeto de desejo dos pais, ou do terapeuta ou de outra figura de adulto importante para ela. Esta situação é paradoxal e conflitante, porém é indispensável para a obtenção da identidade da criança.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para o surgimento do eu corporal, portanto, o corpo deve estar reunido com uma imagem global que aparece por volta do oitavo mês de vida, durante o estágio do espelho, e, sempre em conjunto com as experiências motoras levam ao conhecimento das dimensões corporais permitindo atingir com maior facilidade esta totalidade: “corporeu”.
4. REFERÊNCIAS
AJURIAGUERRA J.; MARCELI D. La exploración del niño. Barcelona: Masson, 1987.
BARRETO, J.F. Sistema estomatognático y esquema corporal. Disponível em
http://www.colombiamedica.univalle.edu.co/Vol30No4/estomato.html. Acessado em: 24 de abril de 2002.
http://www.colombiamedica.univalle.edu.co/Vol30No4/estomato.html. Acessado em: 24 de abril de 2002.
FELDENKRAIS, M. Consciência pelo movimento. São Paulo: Summus,1977.
KRUEGER, D.W. Developmental and Psychodynamic Perspectives on Body Image change, 1990.
LAPIERRE, A. A Falta - Fusionalidade e Identidade. In: Fantasmas Corporais e Prática Psicomotora. São Paulo: Manole, 1984, p. 9-42.
LE BOULCH,J. O desenvolvimento psicomotor - do nascimento até 6 anos. Porto Alegre: Artes Médicas,1987.
MONTARDO, J.L. Aprendendo a Vida. Disponível em:
http://planeta.terra.com.br/saude/montardo/desenvolvimento/epensamento2.htm. Acessado em 03 de maio de 2002
http://planeta.terra.com.br/saude/montardo/desenvolvimento/epensamento2.htm. Acessado em 03 de maio de 2002
RAMOS, E. Algumas áreas da psicomotricidade. Disponível em: http://members.tripod.com.br/ramoseducacaofisica/motor.htm. Acessado em 12 de maio de 2002.
SCHILDER, P. A Imagem do Corpo: As Energias Construtivas da Psique. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
SCHILDER, P. F. The Image and the Appearance of the Human Body: Studies in Constructive Energies of the Psyche. London: Trench e Trubner, 1935.
[1] Mestranda da Universidade de Évora, Psicomotricista relacional diretora da Argos, especialista em família, professora da Faculdade Maurício de Nassau. E-mail: patrícia_tavora@yahoo.com.br